A Emenda Constitucional nº 103/2019 trouxe profundas transformações no sistema previdenciário brasileiro, destacando-se pela desconstitucionalização de parte significativa das normas relacionadas à previdência social. Tal desconstitucionalização implica a transferência de vários aspectos regulatórios para o âmbito infraconstitucional, permitindo que alterações sejam realizadas por meio de leis ordinárias ou complementares, em vez de emendas constitucionais.
Essa flexibilização legislativa suscita preocupações quanto à proteção de direitos fundamentais. A rigidez do processo de emenda à Constituição é um importante mecanismo de garantia da estabilidade e previsibilidade jurídica, assegurando que modificações em direitos essenciais não ocorram de maneira precipitada ou desprovida de amplo debate social e parlamentar. A transferência de competência para legislação infraconstitucional reduz a proteção desses direitos, facilitando sua alteração em cenários de instabilidade política.
Argumentos Doutrinários e Jurisprudenciais
O doutrinador Rômulo Silva destaca que a Emenda Constitucional nº 103/2019 “abre espaço para que tais direitos sejam alterados sem tanta cerimônia”, observando que a proposta de desconstitucionalização referida na PEC 06/2019 menciona cerca de 52 vezes a possibilidade de regulamentação por lei complementar. Essa abordagem fragmentada permite que futuras alterações ocorram em “doses homeopáticas”, facilitando a diluição progressiva de direitos previdenciários sem a necessidade de um processo mais rigoroso de emenda constitucional.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem reiterado a necessidade de preservar o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6096, o STF reconheceu a inconstitucionalidade material de dispositivos que comprometem o direito fundamental à previdência social, afirmando que qualquer legislação que viole o conteúdo essencial desse direito deve ser declarada inconstitucional.
O princípio da segurança jurídica, como bem enfatiza Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao citar José Afonso da Silva, consiste no “conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos”. A relativização desse princípio pela desconstitucionalização fragiliza a previsibilidade normativa e coloca em risco a confiança dos cidadãos na estabilidade das relações jurídicas previdenciárias.
Retrocesso Social e o Efeito Cliquet
A doutrina também alerta para o risco de retrocesso social. O efeito cliquet, conforme mencionado, representa a impossibilidade de retroceder em direitos sociais conquistados. A desconstitucionalização pode ser vista como uma forma de autorização constitucional ao retrocesso, permitindo que futuras regulamentações enfraqueçam as garantias mínimas asseguradas no texto constitucional.
Nesse sentido, David Landau observa que o “constitucionalismo abusivo” ocorre quando mecanismos de alteração constitucional são utilizados para minar a democracia e reduzir direitos fundamentais. A Emenda 103/2019, ao abrir espaço para regulamentação infraconstitucional, pode ser interpretada como um exemplo de tal prática, comprometendo o caráter protetivo da Constituição em relação à previdência social.
Considerações Finais
Portanto, é imprescindível que o Judiciário mantenha uma postura ativa na defesa do núcleo essencial dos direitos fundamentais previdenciários, evitando que a desconstitucionalização promovida pela Emenda 103/2019 resulte em retrocessos sociais incompatíveis com os princípios constitucionais. Cabe à sociedade e às instituições democráticas garantir que as transformações no sistema previdenciário não comprometam a proteção social e a dignidade dos segurados, pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Elaborado por:
Eduardo Rodrigues Petry
OAB/SP 354.023
Deixe uma resposta