1. A LEI MARIA DA PENHA
Durante muitos anos, a violência praticada contra a mulher não era vista como um problema social, mas com a evolução da sociedade, houve a crescente necessidade de reconhecimento da importância dos direitos das mulheres.
Embora existissem medidas legislativas para tal, as mesmas não eram efetivas para coibir a prática de delitos contra as mulheres, até o advento da Lei nº 11.340/06.
A referida lei é popularmente conhecida como Lei Maria da Penha e recebeu esse nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de recorrentes violências por parte de seu companheiro.
Assim, sem encontrar soluções efetivas por parte do Estado, Maria da Penha denunciou o país à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e resultou em uma condenação do Brasil pelo reconhecimento de negligência e omissão frente ao caso de violência doméstica sofrido por ela.
A condenação ocasionou uma revisão das políticas públicas do país em relação à violência contra a mulher e a publicação da Lei nº 11.340/06, culminando em avanço significativo da proteção das mulheres vítimas de violência.
2. ABRANGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA
A Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) trouxe diversos mecanismos de proteção à mulher e ao combate da violência, principalmente com atuação multidisciplinar para abranger todos os âmbitos afetados pelos delitos cometidos em ambiente doméstico.
Para tanto, importante analisarmos as pessoas protegidas por essa lei e quais os crimes que ela abrange.
2.1 QUEM ESTÁ PROTEGIDO PELA LEI MARIA DA PENHA?
A Lei deixa evidente em seu texto legal a proteção de mulheres que sofrem violência em circunstâncias domésticas ou familiares.
O que poucas pessoas sabem é que a aplicação da Lei 11.340/06 não se restringe à esposa ou companheira em coabitação, mas abrange qualquer integrante do sexo feminino, ou do gênero feminino, da unidade doméstica.
Além disso, não se exige que a relação de afeto seja contemporânea à prática da violência, mas que a motivação para o delito esteja relacionada a ela. Por exemplo, o ex-namorado que praticar violência contra a ex-namorada por não aceitar o fim do relacionamento, mesmo após meses ou anos de término, será indiciado pela prática de violência contra a mulher no âmbito da Lei Maria da Penha, pois a motivação foi o relacionamento amoroso que existiu entre eles.
Destaca-se, ainda, que não é exigida relação amorosa entre as partes, envolvendo quaisquer indivíduos que possuam vínculo de afeto ou familiar.
Dessa forma, vê-se que a Lei Maria da Penha protege todas as pessoas do sexo ou gênero feminino, que sofrem violência dentro do contexto de uma unidade doméstica e familiar, em decorrência da situação de vulnerabilidade da vítima em relação ao agressor.
2.2 QUAIS OS CRIMES QUE A LEI ABRANGE?
A Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) não determina sua aplicação pelos crimes em si, mas pela situação fática em que os delitos do Código Penal são praticados.
Dessa forma, em seu artigo 5º, consta que a violência contra a mulher cometida no âmbito doméstico, familiar ou nas relações íntimas de afeto são abrangidas pela Lei Maria da Penha, evidenciando a possibilidade de aplicação para casos em que o relacionamento já terminou, mas o crime foi cometido em decorrência da relação de afeto existente entre as partes.
O fator que condiciona a incidência ou não da Lei Maria da Penha ao crime não é a natureza deste, mas a situação fática em que foi praticado – motivação inserida no âmbito familiar.
Entretanto, no que consiste a unidade familiar? O Magistrado Guilherme de Souza Nucci conceitua “unidade doméstica” como “o local onde há o convívio permanente de pessoas, em típico ambiente familiar, vale dizer, como se família fosse, embora não haja necessidade de existência de vínculo familiar, natural ou civil.”
Ou seja, não se exige vínculo sanguíneo ou relação amorosa para a incidência da referida lei.
O único crime previsto na Lei Maria da Penha versa sobre o descumprimento de medida protetiva de urgência, previsto no artigo 24-A, determinando a aplicação de pena de detenção de 03 (três) meses a 02 (dois) anos.
Dessa forma, temos que a lei abrange todos os crimes praticados em um contexto doméstico e familiar, cuja motivação tenha se originado por essa relação, independente da espécie/natureza do crime.
3. AS DIFERENTES FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Diferente do que todos imaginam, a violência doméstica pode compreender mais espécies além da física.
O artigo 7º da Lei nº 11.340/06 dispõe sobre as formas de violência que podem ser praticadas contra as mulheres no ambiente doméstico, consistindo em:
- Violência física, que compreende condutas que ofendem a integridade física da vítima;
- Violência psicológica, consistindo em condutas que afetem o lado emocional da mulher, desestabilizando o seu estado natural psicológico;
- Violência sexual, abrangendo condutas que ofendem a integridade sexual da mulher;
- Violência patrimonial, caracterizada por condutas que afetem o patrimônio na mulher;
- Violência moral, compreendida em condutas que configurem calúnia, difamação e injúria contra a mulher.
As formas de violência acima descritas estão inseridas em diversos tipos penais diferentes, de naturezas distintas, possuindo uma conceituação ampla, de forma a permitir o enquadramento de diversos crimes em sua definição.
Dessa forma, a mulher pode ser vítima de mais de uma espécie de violência e, por consequência, de mais de um delito em um mesmo contexto.
4. PROTEÇÕES LEGAIS OFERECIDAS
Destaca-se, inicialmente, que a Lei nº 11.340/06 determina que a proteção da mulher deve ser um trabalho conjunto da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, a fim de diminuir a prática dos delitos inseridos no contexto da Lei Maria da Penha.
A própria Lei é didática em relação às garantias oferecidas às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, abrangendo tanto as questões jurídicas, como também as sociais violadas por tais delitos.
Dentre as medidas, existem as que compõe o grupo de medidas protetivas de urgência, visando a proteção da mulher no curso do inquérito policial e processo judicial, além de outras que envolvem o andamento processual.
Temos por medidas protetivas de urgência àquelas concedidas de forma administrativa (pelo próprio Delegado) ou de forma judicial (pelo juiz) a fim de proteger a mulher durante o andamento do inquérito e do processo judicial, ou seja, antes de proferida a sentença do caso em questão.
A Lei Maria da Penha, nos artigos 22 a 24, dispõe sobre medidas protetivas de urgência que visam a proteção da mulher e do núcleo familiar atingido pela violência. O artigo 22 prevê aquelas medidas que obrigam o agressor, ou seja, impõe condutas a ele, as quais podem ser impostas cumulativamente, consistindo em:
- Suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
- Afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
- Proibição de aproximação e contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas;
- Proibição de frequentar determinados lugares;
- Restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores;
- Prestação de alimentos provisionais ou provisórios;
- Comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e
- Acompanhamento psicossocial do agressor.
Importante mencionar que o rol apresentado acima não é restritivo, podendo ser aplicadas outras medidas previstas na legislação penal.
O artigo 23, prevê as medidas de caráter multidisciplinar e assistencial à vítima, sendo elas:
- Encaminhamento da ofendida e dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção;
- Recondução da ofendida e dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
- Afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo de seus direitos;
- Separação de corpos;
- Matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles, independentemente da existência de vaga.
Além das medidas assistenciais acima descritas, ainda prevê medidas de proteção ao patrimônio da mulher vítima dos casos de violência doméstica, em seu artigo 24, sendo elas:
- Restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor;
- Proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum;
- Suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
- Prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Além dessas medidas, existem outras formas de proteção previstas na referida lei, as quais não são concedidas em caráter de urgência.
O artigo 16 da Lei nº 11.340/06, impõe a realização de audiência perante um juiz competente para a renúncia da representação, vislumbrando impedir que a mulher pratique tal conduta sob ameaça de seu agressor. A renúncia da representação seria manifestação de vontade da ofendida na interrupção do inquérito policial, ou seja, no não prosseguimento do inquérito policial.
Ressalta-se que a representação da mulher ocorre apenas nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, previstos expressamente no Código Penal, não sendo necessárias para todos os delitos.
Outra forma de proteção é a previsão de crime e imposição de pena para o descumprimento das medidas protetivas de urgência, no artigo 24-A da referida Lei.
Dessa forma, vê-se que a Lei Maria da Penha protege a mulher de forma integral, ou seja, compreendendo questões patrimoniais, sociais e físicas, visando resguardá-la de qualquer risco desde o momento da denúncia até o deslinde do processo.
5. POSSÍVEIS PENAS A SEREM APLICADAS
Conforme mencionado anteriormente, a Lei 11.340/06 não prevê crimes específicos de violência doméstica e familiar, ressalvado o crime de descumprimento de medida protetiva descrito no artigo 24-A.
Ocorre que, a Lei Maria da Penha apresenta algumas diferenças em relação ao andamento processual, de forma a efetivar a proteção da vítima, mas com a aplicação dos delitos previstos na legislação penal geral e especial – Código Penal e demais legislações.
Assim, as penas aplicadas são aquelas determinadas pelo delito em si, com a incidência da agravante do artigo 61 do Código Penal, quando não houver um tipo penal específico para tal, além dos procedimentos previstos na Lei Maria da Penha.
Por exemplo, o agressor que ameaça a sua ex-esposa de morte, será indiciado pelo delito de ameaça, mediante o desejo de representação da ofendida, previsto no artigo 147 do Código Penal, com a agravante da prática em relação doméstica e familiar do artigo 61 do Código Penal.
Como demonstrado, não existem penas específicas para os crimes praticados em ambientes de relação doméstica e familiar. A Lei Maria da Penha prevê apenas alguns procedimentos específicos para a aplicação das penas previstas no próprio Código Penal.
Como forma de exemplificar, um desses procedimentos específicos de aplicação das penas previstas no Código Penal, está previsto expressamente no artigo 41 da Lei nº 11.340/06, consistindo na impossibilidade de aplicação das medidas despenalizadoras da Lei nº 9.099/95, ou seja, a não aplicação da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95), não caracterização dos crimes como “menor potencial ofensivo” (art. 61 da Lei nº 9.099/95), dentre outras. Tal medida se justifica pela discrepância entre as medidas despenalizadoras e os fins sociais da referida Lei.
Nesse mesmo sentido, o artigo 17 veda a aplicação de penas de pagamento de cesta básica ou outras forma pecuniárias, além da substituição de pena privativa de liberdade por pena exclusivamente pecuniária aos delitos praticados em ambiente doméstico e familiar, para impedir a objetificação da vítima, pois o “pagamento” de valores como pena ao crime cometido confere a aparência de “impunidade” aos agressores.
Assim, o intuito da Lei Maria da Penha é a aplicação de penas proporcionais que impactem na sociedade a fim de coibir a prática dos leitos contra a mulher no ambiente doméstico e familiar.
6. CONCLUSÃO
Com o advento da Lei nº 11.340/06 foi possível uma maior efetivação da proteção às mulheres em relação aos delitos praticados no âmbito da violência doméstica e familiar, principalmente com a ampliação das formas de violência, estendendo-se para além da violência física.
Ademais, a abrangência multidisciplinar nos dispositivos legais ali compreendidos, conferem maior segurança e amparo às vítimas, pois não se limitam à aplicação das penas aos crimes, preocupando-se com todo o ambiente familiar e as consequências psicológicas e financeiras decorrentes do delito em questão.
Assim, a Lei Maria da Penha trouxe avanços legais em relação aos delitos praticados em âmbito de violência doméstica e familiar que garantem maior efetividade à proteção das mulheres e, ainda, à coibição da prática de novos delitos nesse contexto.
Referências:
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Artigo elaborado pela Dra. Marina Cleto de Oliveira
OAB/SP 443.633
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