1. INTRODUÇÃO:
O presente artigo tratará, de forma resumida, sobre o surgimento do trabalhador rural e a evolução legislativa do segurado especial (em regime de economia familiar ou individual) frente as injustiças perante o acesso aos benefícios previdenciários.
Abordar-se-á, também, a intenção do legislador em amenizar as diversidades e dificuldades enfrentadas por esses trabalhadores e, ainda, as garantias legais de redução dos requisitos aos benefícios previdenciários.
Além disso, o presente artigo demonstrará como se dá a comprovação da atividade rural, destacando o conceito e a utilidade do início de prova material contemporânea aos fatos alegados, bem como a possibilidade do segurado especial utilizar prova em nome de terceiro e estender sua condição de rural.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHADOR RURAL E O SURGIMENTO DO SEGURADO ESPECIAL:
O labor rural passou por diversas regulamentações, sendo a Lei nº 4.214/1963 a primeira norma de proteção previdenciária, estabelecendo a criação do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural. Referida norma instituiu como segurados obrigatórios os trabalhadores rurais, os colonos ou parceiros, bem como os pequenos proprietários rurais, empreiteiros, tarefeiros e as pessoas físicas que exploravam atividades agrícolas, pastoris ou na indústria rural.
Posteriormente, a Lei Complementar nº 11, de 25/05/1971, instituiu o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL). Passaram a ser protegidos somente os empregados rurais e produtores em regime de economia familiar. Contudo, os benefícios eram concedidos apenas para o chefe da família, detentor do “pátrio poder familiar”.
Com o advento da Constituição Cidadã (CRFB/88), criou-se a ideia de unificação dos sistemas, inserindo-a entre os objetivos da seguridade social (art. 194, parágrafo único, inciso II). Ainda mais, o acesso à Previdência Social por parte dos produtores rurais e pescadores que trabalham em regime de economia familiar, foi elevada a garantia constitucional (BERWANGER 2020).
A inclusão dos produtores em regime de economia familiar consolida a ideia de preocupação com a necessidade de um sistema diferenciado de recolhimento. Assim determinou o texto constitucional:
Art. 195, § 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).
O texto constitucional trouxe alguns elementos referentes ao segurado especial, mais especificamente: a) definição sobre quem seria considerado segurado especial; b) método de contribuição; c) previsão de que a lei definiria critérios para os benefícios.
Revela-se que o texto do § 8º do art. 195 foi mantido integralmente na Reforma da Previdência, traduzida na Emenda Constitucional nº 103/2019.
3. A PROVA DA ATIVIDADE RURAL:
Cumpre esclarecer que, desde o advento da Lei Complementar 11/1971, a regra diferenciada de acesso dos trabalhadores rurais à Previdência já existia, não vinculando necessariamente o serviço com a contribuição.
A Lei 8.213/1991, atendendo a Constituição Federal, reproduziu a lógica de exigir-se prova do exercício rural, ampliando essa possibilidade para os segurados especiais, conforme seu art. 39. A normativa mais atualizada do INSS (IN nº 128, de março de 2022) reproduz, em seu art. 201, o mesmo entendimento:
Art. 201. Para o segurado especial que não contribui facultativamente, o período de carência é contado a partir do início do efetivo exercício da atividade rural, mediante comprovação.
Ademais, a comprovação do segurado especial deve ser realizada, perante o INSS, com a apresentação da autodeclaração ratificada por entidades públicas executoras do Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária – PRONATER, na forma do art. 115, da IN n. 128/2022.
Outrossim, mister mencionar que a autodeclaração será exigida para comprovação de períodos anteriores a 1º de janeiro de 2023, sendo que, posteriormente, valerá o disposto na Lei n. 13.846/2019, na qual dispõe que a comprovação da condição e do exercício da atividade rural do segurado especial ocorrerá, exclusivamente, pelas informações constantes do cadastro a que se refere o art. 38 do mesmo diploma legal.
Contudo, a aplicabilidade do novo método de comprovação está condicionado à cobertura mínima de 50% (cinquenta) dos cadastros no CNIS referentes a tais segurados especiais, o que não ocorreu até a presente data. Portanto, enquanto não houver essa cobertura mínima, a comprovação continuará mediante autodeclaração, na forma dos artigos 115 e 116, ambos da IN nº 128 de março de 2022, perante o INSS.
Complementarmente a autodeclaração, a comprovação do exercício de atividade do segurado especial será realizada com base em apresentação de documentos listados no artigo 116, da IN n. 128/2023, resumidamente: a) contrato de arrendamento, parceria, meação ou comodato rural, cujo período da atividade será considerado somente a partir da data do registro ou do reconhecimento de firma do documento em cartório; b) bloco de notas do produtor rural; c) notas fiscais de entrada de mercadorias, de que trata o § 7º do art. 30 da Lei nº 8.212, de 1991, emitidas pela empresa adquirente da produção, com indicação do nome do segurado como vendedor; d) certidão de casamento civil ou religioso ou certidão de união estável, entre outros.
A Lei 8.213/1991, em seu artigo 106, corrobora o entendimento administrativo, estabelecendo que a comprovação do exercício de atividade rural será feita, complementarmente à autodeclaração, com a apresentação de documentos (basicamente, os mesmos listados pela norma administrativa do INSS).
O poder judiciário não exige a autodeclaração. Contudo, exige início de prova material contemporânea, conforme art. 55, §3º, da Lei 8.213/1991, corroborada por robusta e coesa prova testemunhal, vedada prova exclusivamente testemunhal, conforme a súmula n. 149/STJ.
Revela-se que o STJ, no julgamento do AgRg no REsp 1.311.495, pacificou o entendimento de que o rol de documentos hábeis à comprovação do exercício de atividade rural, inscrito no art. 106, parágrafo único, da Lei 8.213/1991, é meramente exemplificativo, e não taxativo, sendo admissíveis outros documentos além dos previstos no mencionado dispositivo.
Sendo assim, para a efetiva comprovação rural perante o INSS (administrativamente), deverá ser apresentado autodeclaração (preenchida corretamente), podendo esta ser ratificada ou não, na forma do art. 115, § 4º da IN n.128. Caso não for ratificada, o INSS realizará pesquisas nos bancos governamentais do governo, na forma do art. 115, § 5º, para ratificar as informações. Por fim, o último procedimento do analista, é verificar o conjunto probatório apresentado, podendo ratificar o período integralmente ou parcialmente, a depender da contemporaneidade dos documentos.
Já a justiça é um pouco mais flexível, não exigindo a autodeclaração, mas sim um início de prova material, na forma estabelecida pelo §3º, artigo 55, da Lei 8.213/1991, devidamente corroborada por prova testemunhal, sendo que essa poderá estender a eficácia do documento mais antigo apresentado (súmula 577/STJ). Ainda, não é necessário apresentar início de prova para todo o período de carência visado (Recurso Especial 1.321.493/PR), haja vista a inerente dificuldade probatória da condição de trabalhador campesino, a apresentação de prova material somente sobre parte do lapso temporal pretendido não implica violação da Súmula 149/STJ, cuja aplicação é mitigada se a reduzida prova material for complementada por idônea e robusta prova testemunhal (REsp 1321493/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2012, DJe 19/12/2012).
4. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE DOCUMENTOS EM NOME DE TERCEIROS: EXTENSÃO DA CONDIÇÃO DE SEGURADO ESPECIAL ENTRE O GRUPO FAMILIAR:
O conceito de segurado especial foi esculpindo-se mediante diversas normas regulamentadoras. Atualmente, o segurado especial, em síntese, é aquela pessoa física (produtor rural, pescador/assemelhado, seringueiro/extrativista animal ou vegetal), que desenvolve atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar.
A grande discussão paira em torno dos documentos para comprovação da atividade rural. Poderia a esposa beneficiar-se da qualificação rurícola do marido declarada em documentos públicos e/ou registros civis? Ou, em contrapartida, teria que juntar documentos em nome próprio?
Tal celeuma encontra-se, até o momento, pacificada, inclusive nas instâncias superiores. Colaciona-se, nesse ponto, o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que as atividades desenvolvidas em regime de economia familiar podem ser comprovadas através de documento em nome do pai de família, que conta com colaboração efetiva da esposa e filhos no trabalho rural (REsp nº 386538/RS).
Além disso, no tocante a admissibilidade de comprovação da condição de rurícola por meio de certidão de casamento, na qual consta a profissão de trabalhador rural do marido da beneficiária, em face do regime de economia familiar, o STJ já tratou acerca da possibilidade. Nesse sentido, os Embargos de Divergência nº 104312/SP, e outros inúmeros acórdãos (RESP 317277/RS; RESP 386.538/RS; RESP 354.596/SP, etc), possuem o mesmo entendimento favorável à referida extensão da condição rural em prol de um dos membros do grupo familiar.
A Turma Nacional de Uniformização (TNU) possui o mesmo entendimento, sendo que, em seu tema 18, foi submetida a seguinte questão controversa: “saber se os documentos em nome de terceiros integrantes do grupo familiar, relativos à propriedade da terra trabalhada, servem como início de prova material da atividade rural”. A tese firmada no tema fora favorável e dispôs que: “a certidão do INCRA ou outro documento que comprove propriedade de imóvel em nome de integrantes do grupo familiar do segurado é razoável início de prova material da condição de segurado especial para fins de aposentadoria rural por idade, inclusive dos períodos trabalhados a partir dos 12 anos de idade, antes da publicação da Lei n. 8.213/91”. O referido tema teve seu acórdão publicado em 28/10/2011 e transitado em julgado em 18/11/2011, julgado no PEDILEF nº 2009.71.95.000509-1/RS).
Outrossim, a Turma Regional de Uniformização, em consonância com o exposto, editou a súmula nº 9, detendo o seguinte enunciado: “Admitem-se como início de prova material, documentos em nome de integrantes do grupo envolvido no regime de economia familiar rural.”
A IN nº 128, de março de 2022, trouxe, expressamente, a possibilidade de extensão. O artigo 116, § 3º, inciso I, esclarece que todo e qualquer instrumento ratificador (documento/início de prova) vale para qualquer membro do grupo familiar, devendo o titular do documento possuir condição de segurado especial no período pretendido, caso contrário a pessoa interessada deverá apresentar documento em nome próprio.
Exemplificando: João e sua esposa trabalham em sua própria terra e produzem para a própria subsistência, podendo ser considerados como segurados especiais em regime de economia familiar. João emite notas de produtor rural, todos os anos. A esposa, ao requerer sua aposentadoria, poderá beneficiar-se de tais notas para comprovação de sua atividade como segurada especial, em regime de economia familiar, mesmo que tais documentos estejam somente em nome do marido, pois, a realidade demonstra que, nas pequenas propriedades rurais, onde a terra é explorada com o auxílio de todos os membros da família, quaisquer documentos (notas fiscais de produtor, certidões, e outros) sempre se encontram em nome de quem aparece frente aos negócios da família, em geral o pai/marido (FORTES 2005).
No mesmo sentido, o benefício concedido ao segurado especial, administrativamente ou judicialmente, configura início de prova material válida para posterior concessão aos demais integrantes do núcleo familiar, assim como ao próprio beneficiário, na forma estabelecida pelo enunciado nº 188 do FONAJEF.
Ainda, retornando ao exemplo dado, no que toca à referida extensão, é importante salientar que se o marido (João) exercer atividade remunerada por mais de 120 (cento e vinte) dias e sobrevier a ser descaracterizado da condição de segurado especial, a esposa terá que apresentar, no interregno que seu marido não detém condição de segurado especial, documentos em seu próprio nome. Contudo, se o marido retornar as lides rurais, poderá utilizar os documentos destes para comprovar a atividade rural de sua esposa, visto que a extensão é amplamente possível em prol do grupo familiar, exceto se este não for segurado especial na época do documento apresentado pelo integrante.
5. CONCLUSÃO:
Ante todo o exposto, concluímos que o segurado especial é aquele produtor rural, pescador/assemelhado, seringueiro/extrativista animal ou vegetal, que desenvolve atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar. A figura do segurado especial fora tomando forma com as revoluções sociais e a proteção legislativa ficando cada vez mais flexível e protetora.
Atualmente, o segurado especial/trabalhador rural encontra requisitos reduzidos para aposentação e critérios diferenciados para a contribuição em prol do Regime Geral de Previdência Social.
Outrossim, importante mencionar que o segurado especial comprova sua atividade rural mediante apresentação de início de prova material, sendo possível aposentar somente com a comprovação do tempo rurícola e não, necessariamente, contribuindo para os cofres públicos.
O início de prova material poderá ser utilizado pelos integrantes do grupo familiar, se o integrante gozar da condição de segurado especial no momento da apresentação do documento e não sobrevier qualquer hipótese descaracterizadora da condição quando da apresentação do documento. Ademais, conforme visto, nota-se que é pacífica a extensão dos documentos rurais voltada aos trabalhadores em regime de economia familiar.
6. REFERÊNCIAS:
BERWANGER, Jane Lucia Wilherm. SEGURADO ESPECIAL NOVAS TESES E DISCUSSÕES. 3. ed. Juruá: Juruá, 2020. 316 p.
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil.. . Rio de Janeiro, 01 jan. 1916.
BRASIL. Lei nº 4214, de 1963. Dispõe sôbre o “Estatuto do Trabalhador Rural… Brasília, 02 mar. 1963.
BRASIL. Lei Complementar nº 11, de 1971. Institui o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, e dá outras providências.. . Brasília, 25 maio 1971.
BRASIL. Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016.
BRASIL. Lei nº 8.213, de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências… Brasília, 24 jul. 1991.
BRASIL. Instrução Normativa nº 128, de 2022. Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário.
Por Gustavo Bragagnolo
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